Desde o meu último encontro com o projeto B12, vulgo, Naoko, uma sensação estranha vem se fazendo presente nos dias posteriores. O fato de revê-lo talvez tenha desencadeado algum gatilho em especial nas lembranças do passado, ou até mesmo a questão de ter perdido controle do meu demônio e colocado o jovem em uma situação de quase morte. Fiz de tudo ao meu alcance para focar no falso moralismo, na falsa ideia de que eu seria alguém agradável para com os alunos e outros funcionários, mas de uma forma, ou de outra, aquela terrível e inevitável sensação retornava acompanhada por uma enxaqueca. Nada do que eu fazia, ou tentava fazer, era capaz de me deixar melhor.  

''Vamos lá, Calliope. Você sabe qual o seu objetivo aqui, o que você sente ou pensa pouco importa, deve cumprir a missão, não importando o custo'' dizia repetidamente nos meus pensamentos, no meio tempo em que me esforçava para abrir as vistas. Mal tinha conseguido pregar os olhos, e quando o fiz, o despertador tocou para me lembrar de que hoje haveria outro treino com o dito cujo projeto. A posição a qual me encontrava na cama, de lado e encolhida, totalmente aquecida entre os três cobertores que nela havia, só servia como um peso para levantar. Era como se minha mente obrigasse meu corpo a não reagir. E por conta dos últimos acontecimentos, meu servo não estava se fazendo tão presente quanto antes.  

Depois de longos minutos relutantes, eis que tomo coragem e impulso para levantar. Apoio-me na cama com os dois braços, enquanto dou várias piscadas, lutando contra meus próprios olhos para mantê-los abertos. Um longo bocejo de sono ecoa pela minha boca, seguido de sons em forma de resmungos. A primeira coisa que faço é ir ao banheiro lavar o rosto. ''Talvez a água me dê um choque'', penso. E de fato, sentir a água gelada nos poros do rosto meio que deu uma despertada. Não mais precisava forçar a manter-me desperta, e isso já era algo de grande valor. Vou então em direção do armário, optando por um conjunto simples de calça jeans, salto alto e uma camisa social de manga longa branca. Visto rapidamente tudo, sem me preocupar em passar maquiagem ou colocar adornos.  

Caminhando pelo instituto, por ser de madrugada e não ter quase ninguém acordado ou nenhum outro ruído, o som de cada passo meu ressoava pelos corredores. E eu não me importava em fazer barulho, tampouco se me notassem lá. A desculpa usada, ou no caso, a realidade, seria a pura verdade. ''Estou indo em direção aos aposentos de Naoko, acordá-lo para um treino surpresa'' seriam as palavras utilizadas para o momento. De acordo com o que constava nos documentos, e também nas informações que me passaram, o dormitório do garoto não era muito distante, e em poucos minutos eu estaria lá.  

— Naoko, sua presença é requisitada na sala de projeções — diria ao forçar a porta para abri-la, e se caso esta estivesse trancada, nada que um pouco de força bruta não resolvesse. — Você tem 5 minutos para se arrumar. — Permaneceria então do lado de fora, com os braços cruzados, o aguardando.  

Levando em consideração que nossa outra união não completava nem sequer uma semana direito, Naoko ainda deveria estar se recuperando das lesões causadas, permanecendo em repouso. E esse era o momento perfeito para testá-lo, saber até em que ponto os limites do rapaz alcançariam. Embora eu não me importasse muito com o que ele sentia, pensava ou desejava, prezar pela saúde mental e física dele infelizmente ainda se fazia necessário. A morte dele seria o meu fracasso, e em tantos anos de vida, a derrota nunca me foi uma opção.  

Enquanto eu estava parada próxima da porta, aguardando, desviava os olhares, na tentativa de não constranger o garoto, que por sinal, aparentava estar quase que inteiro novamente. Olhando para o nada, viajo nos meus próprios pensamentos, tendo quase que um flashback do passado, onde só pude ouvir os gritos distantes de uma criança ao ser torturada na mesa de cirurgia, de acordo com a percepção dela. A criança mais tarde atenderia pelo nome de Naoko. Quase todos os procedimentos que foram realizados em Naoko, eu estava presente. Desde o início, fui designada a ele, como tutora e cuidadora pessoal. Nos momentos em que ele sofria de dor, eu quem estava lá para acalmá-lo; quando ele chorava, minhas borboletas que o fazia se distrair, esquecendo por alguns instantes a situação que se encontrava. No entanto, fui percebendo que com o passar dos anos, sentimentos estavam sendo desenvolvidos por ele, e interrompi o processo. Por mais que eu tenha meu lado demoníaco, a parte humana ainda reside no interior do meu ser. Caberia a mim, de tal maneira a qual fora feita, findar quaisquer tipos de vínculos emocionais futuros com o B12.  

Ao ouvi-lo dizer que já estava pronto, dei as costas sem pronunciar nenhuma palavra e comecei a andar em direção a sala de projeções, no segundo andar do subsolo. Permaneceria em silêncio durante todo o percurso, com longos e rápidos passos, para que sempre o jovem ficasse atrás de mim. Algo de errado estava acontecendo comigo, e a pior parte é que eu não tinha o conhecimento do que poderia ser. Isso apenas me deixava mais agoniada, ao ponto de sentir lágrimas escorrendo pelo meu rosto. No instante que percebo, levanto o braço esquerdo e levo a mão até o rosto, disfarçando estar colocando o cabelo por detrás da orelha, e passo o dedo na lágrima, retirando-a da pele. ''Eu estou... chorando?'' Era inaceitável demonstrar fraquezas, muito mais inaceitável demonstrar perto de outros, ainda mais próxima de Naoko. Rapidamente balanço a cabeça, para tentar acordar.  


— Tenho o conhecimento de que posso ter sido muito rígida contigo no domingo, Naoko — falei, aproximando-me já da porta da sala de projeções — não quero que você tenha medo de mim, mas que saiba de uma coisa, no futuro, irá me agradecer por tudo isso. — Tentei ao máximo disfarçar o tom da voz, para que ele não percebesse em qual situação eu me encontrava no momento. O nível de concentração necessária que eu estava precisando para não fraquejar naquele instante era imenso, eu... eu não poderia falhar.  

— Trouxe você aqui por dois motivos. — Encostei-me na porta. — O primeiro, como anteriormente dito, é deixar claro que em hipótese alguma, eu quero que você sinta repulsa de mim. O tratamento que você recebe é o mesmo que dos demais alunos, por mais que não pareça. Agora, o segundo motivo, é que eu desejo ver até onde seu corpo aguenta, e com isso, irei me basear nos seus futuros treinamentos. Saiba que minha didática é totalmente diferente dos outros instrutores, e por isso, tenho o gosto de dizer que quem me tem como professora, no final do ano, demonstra o maior desempenho do instituto. — Ao dizer tais coisas para o Naoko, volto a ficar instável, esquecendo por alguns instantes o quão quebrada eu aparentava estar há alguns minutos.  

Abaixei os braços, girando a maçaneta e adentrando a sala. Fragmentos de memórias passadas vieram à minha mente, relembrando o momento em que perdi controle do guardião. ''Estou assim por perder o controle do demônio, aparentando ser fraca, ou por ter quase matado Naoko?'' pensei, dando o primeiro passo em direção da cadeira, por fim, me sentando e ficando de frente para o jovem, que ainda estaria parado na porta.  

— Já sabe o caminho.  

Estou me sentindo como se eu estivesse em um combate interno, contra mim. A ausência do Guardião me afetava de forma negativa, fazendo com que meu lado humana viesse à tona. Sem ele, todas as emoções, todos os sentimentos, pensamentos, tudo retornava intensamente e de forma devastadora. O meu normal é um estágio de anestesia, onde eu posso fazer o que eu quiser, com quem eu quiser, sem me importar com nada ou com ninguém, mas tudo isso estava mudando conforme mais próxima de Naoko eu ficava — e não há possibilidades de me afastar agora.  

— Não, jovem. — Pressionei o botão para abrir o microfone, aproximando-me dele. — Você não enfrentará somente um, mas como vários, hologramas. E aquela coisa não se fará presente até que você esteja totalmente recuperado. — Finalizei soltando o botão, e projetando um novo cenário para Naoko no painel de controle.  

''Madame, sinto que falhei com a senhora, e todo esse tempo ausente, foi por conta de estar me punindo. Não sei o que houve comigo para perder o controle, mas eu realmente sinto muito e garanto que isso não acontecerá mais. Você é minha mestra, e eu o seu servo. Irei obedecê-la e protegê-la até os últimos dias de nossas vidas.'' Foi o que eu ouvi assim que comecei a projetar o cenário. Meu Guardião havia retornado, e mesmo que ele fosse um demônio, passar todos esses anos comigo, o mudou. Afinal, o coração dele estava em mim, literalmente. Ainda que parte da culpa fosse dele, eu tinha uma parcela nisso. Ter controle sobre minhas habilidades era algo fundamental para manter o controle, e perdendo tal domínio, ele já não mais poderia receber meus comandos.  

— Vamos esquecer que isso aconteceu, querido. Estamos tanto tempo juntos, passamos por tantas coisas, que não vale a pena mais nos importarmos por algo tão banal — o respondi, no mesmo instante que pude perceber toda aquela sensação ruim desaparecendo. Com a volta dele, meu lado humano se encolhia, e a parte demoníaca predominava. Em tradução? Tudo estava reprimido. E é assim que deve ser, para então eu poder prosseguir com a missão. O guardião não voltou a me responder, mas agora eu o sentia novamente. Não estava mais me sentindo só, e isso é fundamental e totalmente necessário.  

Um largo sorriso, de ponta a ponta, surgiu no meu rosto assim que projetava a sala, que anteriormente era vazia, para um cenário totalmente diferente. Agora, Naoko iria presenciar a poucos passos de distância dele uma casa de dois andares, nada diferente daquelas casinhas simples de subúrbios. As paredes, tanto no interior, quanto no exterior, eram revestidas por tinta preta. O caminho para porta de entrada era totalmente repleto de flores, das mais variadas, com o chão em grama. Observando de perto, era possível notar que a iluminação dentro da casa não era tão forte, a fonte de luz que trazia a claridade não passava de velas, as quais poderiam ser apagadas facilmente.  

— Naoko, serei bem rigorosa quanto a este treino, e espero que você não me decepcione. Como está vendo à sua frente, o campo de hoje é apenas uma casa. Todavia, dentro dela, há dezoito pessoas; oito civis e dez bandidos mascarados. Seu objetivo é resgatar a família que está sendo feita de refém, e derrotar os criminosos, que em poucos minutos, irão matar um por um. — Cruzei as pernas, fechando os olhos. — Mas seria muito fácil se fosse apenas isso, então deixarei mais divertido. Nas paredes do lado de dentro da casa, em todos os cômodos, têm uma tela de computador, com a sua imagem nela e uma barra de cem por cento logo abaixo. Todos estão espalhados pelo ambiente, sendo que cada membro da família está na presença de um ou mais inimigos, alguns estão amarrados, outros apenas ajoelhados com armas apontadas em suas cabeças. Para cada baixa aliada, ou seja, civil, você perde dez pontos; e outros dez bandidos surgem imediatamente. A lógica é simples, se todos os membros da família morrerem, terá de enfrentar cem inimigos, todos devidamente armados. — Reabri os olhos, soltando o botão por um instante, erguendo os braços para cima e espreguiçando-me. — Antes de começar, digo-lhe que as regras e informações de domingo ainda são válidas, tal como nossa palavra genial de segurança. Seu objetivo é salvar os reféns, seja como for. Boa sorte.  

No mais, manter-me-ia focada, olhando através das câmeras no painel de controle e controlando os hologramas.